Carta ao Sr. Maurice Druon
Iniciei- me tardiamente como leitora em minha vida, porque minha família operária e trabalhadora não tinha condições de comprar livros para que meus irmãos e eu os lêssemos. Tínhamos que aguardar a caridade de algum leitor desapegado que nos doasse seus livros, afinal a biblioteca mais próxima era longe para uma criança de nove anos. Os pais operários precisavam operar suas máquinas ou varrer os lixos alheios. Não havia tempo para desejar outros mundos.
Entretanto, não existe o ‘tarde demais’, não é? Pois veja bem, há pouco tempo, tive em minha mãos o pequeno Tistu e — meu Deus — nunca me senti tão dentro de um contexto como enquanto lia sua indescritível obra. E, sinto muito mesmo, que essa breve epístola já seja em si tardia, mas que posso eu fazer senão lastimar o quão difícil é o alcance cultural de minha pessoa simplória e com pouca bagagem imaginativa para pensar em outras formas de alcançá-lo? Ora, sou apenas isso, não é?
Ainda assim, senhor Druon, sendo uma crente que a vida não cessa com a morte, especialmente, dessas pessoas cuja escrita transformam mundos e perspectivas, venho por meio desta dizer-lhe ‘muito obrigada’ por esse menino que, tendo o dedo verde, me pôs a refletir sobre o poder de crer.
Sabe-se lá o que o senhor pensou ou o que sentiu ao escrever sobre cenários tão improváveis a partir de fatos que não eram só imaginação, porque marcaram-nos a todos e, não é o acaso que eu, nesse ano de 2022, esteja diante de um cenário tão parecido com o que o senhor descreveu em sua obra ainda sem acreditar que nós, homens de pouca fé, pudéssemos voltar no tempo e fazer as mesmas escolhas erradas de antes de mim.
Sei que caio nos clichês e lugares comuns em lhe falando dessa obra — obviamente já recebeu todos os prêmios e louros que podia — mas, em verdade, a carta é para o senhor, entretanto, o lembrete é para nós que nos arrastamos sobre a superfície degrada dos nossos próprios seres que já nem humanos são.
Sim, você: pegue-o, vista-o, cheire-o, sinta-lhe as flores que se derramam, ainda que a linguagem limitada da época nos cause algum constrangimento, mas dê-se a oportunidade de entrar no sentido da existência desse livro que é ao qual, com certeza, o senhor Druon se referiu enquanto o escrevia ‘para crianças’. As crianças que, inconscientes, permanecem crescidas e distraídas do quanto vale a paz, do quanto vale uma sociedade equânime e saudável para a economia dos lucros e taxas soberbas que nos sugam e que, acredito, poderiam dividir conosco seu melhor, sem sofrer sequer um arranhão.
Ah, como é doce a ilusão. Hoje, a moda é a utopia. E eu só queria escrever uma cartinha. Será que devo contar ao Papai Noel que ando sendo uma má menina acreditando nesse mundo incerto de ouvidos moucos e gritos surdos?
Enfim, senhor Druon, obrigada por tão emocionante leitura. Mesmo que, no início, suas palavras tenham me causado a confusão desse tempo onde tudo acontece rapidamente e onde as fakes nos enganam os sentidos, fui capaz de entender que sua esperança, afinal, era que o mundo fosse perfumado e não desencontrado. E, lastimo lhe dizer que, até hoje, ainda estamos perdidos nos interesses menos dignos do homem, quando não nos interessamos por conhecer o outro, suas virtudes e tudo o que ele pode nos ensinar, e caminhamos para a guerra como se ela fosse a última instância de sabedoria, quando na verdade, ela é a antessala do desamor que alimenta homens falsamente poderosos, mas cujas ações são ‘abençoadas’ pelos desejos de um poder que jamais teremos.
Parece cada dia mais difícil que entendam isso, mas vou continuar acreditando, afinal pude conhecê-lo em sua obra, talvez, um dia, conheça outros homens em novas,possíveis e belas obras em direção à paz e à justiça.
Att,
Eu.